"♫Cristo falou comigo no toque do berimbau ♪"
José Antonio do Nascimento, mais conhecido como “Nascimento Grande”, foi um dos valentões mais terríveis de Recife, no fim do século 19. Assim como o legendário BESOURO MANGANGÁ, era respeitado na Bahia; MANDUCA DA PRAIA no Rio de Janeiro e NASCIMENTO GRANDE em Pernambuco. Era alto, forte, usava um chapéu e tinha uma bengala que pesava quinze quilos. Uma “bengalada” e Nascimento Grande mandava o sujeito dormir mais cedo.
Conta a história que Nascimento Grande nunca perdeu uma briga. Morreu aos 90 anos. Não era de seu caráter provocar brigas, mas uma vez provocada,ninguém o segurava. Vários capoeiristas tentaram destronar Nascimento Grande para ficar com sua fama, mas, todas as tentativas foram em vão. Da mesma maneira que Besouro tinha poderes sobrenaturais e que era protegido por um “patuá”, conta-se que Nascimento Grande também tinha o “corpo fechado” e usava um amuleto no pescoço para se proteger dos inimigos e das forças negativas. Ninguém pode garantir, mas, o que todos diziam é que até mesmo as balas não atravessavam seus corpos.
Nascimento Grande teve dois inimigos que queriam lhe matar de qualquer maneira; eram eles: CORRE HOJE e ANTONIO PADROEIRO. Uma vez, Corre Hoje foi ajudado por sete homens na tentativa de liquidar Nascimento Grande e no final, encontrou a morte, atingido por uma bala perdida, destinada a Nascimento Grande. Antonio Padroeiro também teve seu fim tentando assassiná-lo; foi desarmado e espancado até a morte. Nascimento Grande tinha um lado parecido com Besouro, bastante característico nos capoeiristas; o de gostar de ridicularizar os inimigos. Uma vez foi atacado por PAJÉU, malfeitor conhecido. Ele lhe deu uma rasteira e o vestiu com roupas de mulheres, o que provocou deboches do publico. Outra vez, em que ele estava cercado por dez soldados numa rua sem saída, ele subiu em um telhado baixo e saltou sobre eles, dando-lhes bengaladas.
De todas as brigas, a maior foi contra JOÃO SABE TUDO,um outro famoso valentão de Recife. Os dois evitavam se encontrar, pois, sabiam que com certeza haveria briga. Certo dia encontraram-se perto do Largo da Paz; eles se cruzaram e a briga começou na mesma hora. João Sabe Tudo com uma peixeira e Nascimento Grande com sua bengala. A cidade inteira estava em volta deles para assistir ao espetáculo. O tempo passava, mais a briga se tornava surpreendente. Nascimento Grande e João Sabe Tudo, avançavam e recuavam, descendo a rua Imperial no meio aos golpes de bengala, rasteiras e muito mais. Eles saíram na Matriz de S. José e entraram, se batendo, na igreja, acompanhados pela multidão. Nesse momento apareceu o vigário, os obrigando a parar em respeito à casa de DEUS; mandando os dois apertarem as mãos. Contra vontade, os dois apertaram as mãos e nunca mais brigaram.
Um dos capoeiristas mais falados pelos antigos tinha o nome de Samuel Querido de Deus. Era considerado imbatível nas rodas, temido por todos os capoeiristas. Seu nome não chegou tão famoso aos dias de hoje quanto os de Pastinha ou Bimba, já que esses tinham academias no centro, inovaram a capoeira e fizeram discípulos que divulgaram seus ensinamentos. Mas Querido de Deus também entrou para a história, impressionando o povo da capoeira e intelectuais e estudiosos da nossa arte daquela época (estamos falando das décadas de 30 e 40).
Para descrevê-lo, nada melhor do que chamar Jorge Amado. Ele conta no seu Bahia de Todos os Santos como era Samuel:
“Já começaram os fios de cabelo branco na carapinha de Samuel Querido de Deus. Sua cor é indefinida. Mulato, com certeza. Mas mulato claro ou mulato escuro, bronzeado pelo sangue indígena ou com traços de italiano no rosto anguloso? Quem sabe? Os ventos do mar nas pescarias deram ao rosto do Querido de Deus essa cor que não é igual a nenhuma cor conhecida, nova para todos os pintores. Ele parte com seu barco para os mares do sul do estado onde é farto o peixe.
Quantos anos terá? É impossível saber nesse cais da Bahia, pois de há muitos anos que o saveiro de Samuel atravessa o quebra-mar para voltar, dias depois, com peixe para a banca do mercado Modelo. Mas o velhos canoeiros poderão informar que mais de sessenta invernos já se passaram desde que Samuel nasceu. Pois sua cabeça já não tem fios brancos na carapinha que parece eternamente molhada de água do mar? Mais de sessenta anos. Com certeza. Porém ainda assim, não há melhor jogador de capoeira, pelas festas de Nossa Senhora da Conceição da Praia, na primeira semana de dezembro, que o Querido de Deus.
Que venha Juvenal, jovem de vinte anos, que venha o mais ágil, o mais técnico, que venha qualquer um, e Samuel, o Querido de Deus, mostra que ainda é o rei da capoeira da Bahia de Todos os Santos. Os demais são seus discípulos e ainda olham espantados quando ele se atira no rabo-de-arraia, porque elegância assim nunca se viu..."
Também a antopóloga americana Ruth Landes, que fez um trabalho maravilhoso estudando o candomblé em Salvador no ano de 1938, assistiu acompanhada de Edison Carneiro a um jogo de capoeira de Samuel com Onça Preta e descreve o jogo em detalhes no seu livro "A cidade das mulheres". Lá, ela conta que ele era "alto, mulato, de meia-idade, musculoso e pescador de profissão".
Edison Carneiro considerava-o "o melhor capoeirista que já se viu". Antonio Lberac Pires nos mostra um artigo do Jornal "O Estado da Bahia" de 13 fevereiro de 1937, no qual está escrito que no Segundo Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador, quem comandou a apresentação de capoeira foi Querido-de-Deus, "considerado pelos outros capoeiristas como o melhor entre eles". E também, é claro, ele é citado no essencial livro "Capoeira Angola", de Waldeloir Rêgo.
Agenor Moreira Sampaio, mais conhecido como Sinhozinho de Ipanema, era paulista, nascido em Santos, em 1891, e tendo falecido em 1962. Dotado de extraordinário vigor físico, destacou-se em várias modalidades esportivas. Embora tenha terminado seus dias em Ipanema, morou muitos anos em S. Cristóvão e em Copacabana.
Aprendeu sua capoeira observando os bambas de sua época, convivendo com os boêmios, com os valentes e os malandros do Rio de então.
Tendo praticado outras formas de luta, como o box e a luta greco-romana, via a capoeira como luta, sem se dedicar a seus aspectos de música, folclore e atividade acrobática. Os capoeiras do Rio de Janeiro usavam sua arte para brigar, enfrentar seus adversários sem nenhum espírito esportivo, antes, frequentemente, em disputa de seus territórios. A navalha e a faca eram seus companheiros constantes, causando ferimentos e mortes ao final das contendas. Provavelmente por isto, a capoeira é pobre em recursos para a luta agarrada e se completava com estas armas.
Agenor Moreira Sampaio foi um conhecido instrutor de atividades atléticas e lutas que manteve seu centro de instrução em Ipanema durante cerca de duas décadas.
No Clube do Sinhozinho se praticava levantamento de pesos, ginástica em aparelhos, box, capoeira, etc..Existiam, então, muito poucas academias no Rio de Janeiro e a rapaziada de Ipanema tinha aí oportunidade de cuidar do físico e aprender diversas modalidades desportivas.
À noite, os atletas se reuniam nos bares próximos para o papo e as cervejas, daí muitos terem se especializado mais nos chopes do que nas atividades físicas. Mas aqueles que se dedicavam aos treinamentos recebiam atenções especiais do mestre e muitos se tornaram atletas destacados, tendo alguns se orientado para o magistério. Entre os que se exercitaram sob a orientação de Sinhôzinho podemos destacar: Paulo Azeredo, Paulo Amaral, Sílvio M. Padilha, André Jansen, Bruno e Rudolf Hermanny, Luiz Pereira de Aguiar (Cirandinha), Eloy Dutra, Carlos Alberto Petezzoni Salgado, Joaquim Gomes (Kim), Telmo Maia, Tom Jobim, Carlos Madeira, Darke de Mattos, Comandante Max, Paulo Lefevre, Paulo Paiva, Bube Assinger, Wanderley Fernandes (Paraquedas), José Alves (Pernambuco), Roberto Gomes, Bob Onça, Carlos Pimentel, Lucas e Haroldo Cunha, Manoel Simões Lopes, Flávio Maranhão, Carlos Alberto Copacabana, e numerosos outros. Foram gerações sucessivas, daí a dificuldade de citar todos.
A Capoeira de Sinhozinho se aproximava mais da Regional do que da Angola. Selecionados os golpes que lhe pareciam mais eficazes, Sinhozinho impunha a seus alunos um rígido treinamento repetitivo, fazendo-os aplicar os golpes em sacos e bolas, até que alcançassem precisão e eficiência, além de usar artifícios engenhosos para desenvolver suas habilidades. Sem canto ou ritmo marcado, sua capoeira revela, apenas, a face de luta desta atividade. Sacrifica a beleza do som e da imagem na busca de objetividade marcial.
POLÊMICA
Muitos apaixonados pela bela capoeira da Terra do Bonfim têm dificuldade em aceitar a Capoeira de Sinhozinho como sendo ¨capoeira¨, devido á falta de música e de ritmo marcado por atabaque, pandeiro e , principalmente, berimbáu.
A ginga, que é a alma da capoeira artística baiana, comanda o jogo de capoeira, mas , num combate real, tem que ser adaptada a esta situação., a fim de evitar a exaustão que apressará a derrota. O mesmo pode ser citado em relação aos lances acrobáticos que enchem os olhos mas têm pouca eficácia para dominar os adversários, além de tornarem seus executores mais vulneráveis.
Qualquer capoeira que se proponha a participar de uma luta de verdade
deve fazer uma crítica de seus recursos e selecioná-los à luz de sua eficiência. Logo perceberá que seu repertório ficará mais reduzido e que terá que economizar em sua movimentação. Salvo se seu adversário lhe for muito inferior, quando poderá enfeitar as jogadas.
A capoeira de Sinhozinho era baseada na capoeira das antigas maltas que tanto pertubaram as autoridades do Rio de Janeiro durante longos anos e teve pouca influência das modalidades praticadas ao som do berimbáus .
“misto de estadista e politiqueiro; de jurista e de chicanista; de cabotino e de homem de honra; de mestiço e de fidalgo; combatendo a aristocracia e pleiteando para seus filhos um lugar na nobreza; contradição viva, enfim, que deixou em seus contemporâneos uma impressão de versatilidade, de ceticismo, e de sarcasmo, curiosamente contrabalançados por uma vaidade surpreendente.”
JOSÉ MAURÍCIONUNES GARCIA
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) foi padre brasileiro. Compositor sacro, foi mestre de capela da antiga Catedral da Sé do Rio de janeiro. Nomeado, pelo imperador D. João VI, mestre da música sacra da Capela Real.
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) nasceu no Rio de Janeiro, no dia 22 de setembro de 1767. Filho de um escravo alforriado e uma mestiça, ficou órfão de pai aos seis anos de idade. Ainda jovem demonstrou vocação pela música, estudando teoria musical com o mestre Salvador José. Tocava vários instrumentos e se apresentava em festas familiares.
Em 1792 ordenou-se padre, depois de superar os "problemas" da cor. Em 1798 foi nomeado mestre de capela da antiga Catedral da Sé do Rio de Janeiro, na época, o mais elevado posto de um músico brasileiro. Logo revelou sua inclinação para compor músicas sacras. Com a instalação da corte de D. João VI no Rio de Janeiro, José Maurício foi apresentado ao rei e este entusiasmado o nomeou mestre da Capela Real, tornando-se o músico mais importante do reino de Portugal.
Ao chegar ao Brasil o compositor português Marcos Portugal, logo entusiasmou-se com a obra do compositor brasileiro. Foi designado diretor do Teatro São João, onde representou várias óperas. Mas, não demorou muito a promover séria perseguição ao músico brasileiro, vendo nele um grande competidor. José Maurício recebeu de D. João VI, durante anos, uma pensão, que foi suspensa em 1822, após a Proclamação da Independência.
Padre José Maurício fundou um curso de música na rua das Marreca, que funcionou durante vinte e oito anos. Seu aluno mais ilustre foi D. Pedro I e Francisco Manuel da Silva, autor da melodia do Hino Nacional Brasileiro.
José Maurício Nunes Garcia morreu no Rio de janeiro, no dia 18 de abril de 1830.
Antônio Francisco Lisboa
Aleijadinho (1730-1814) foi um escultor, entalhador, carpinteiro e arquiteto do Brasil colonial.
Ele é considerado o maior representante do barroco mineiro, sendo conhecido por suas esculturas em pedra-sabão, entalhes em madeira, altares e igrejas.
Antônio Francisco Lisboa, O Aleijadinho, nasceu na cidade mineira de Vila Rica, atual Ouro Preto. Há controvérsias sobre sua data de nascimento, mas a maioria dos pesquisadores dizem que ele nasceu em 29 de agosto de 1730.
Filho do português Manuel Francisco Lisboa, mestre de carpintaria, que chegou a Minas Gerais em 1728, e de uma escrava chamada Isabel.
Aleijadinho estudou as primeiras letras, latim e música com alguns padres de Vila Rica. Aprendeu a esculpir ainda criança, observando o trabalho de seu pai que esculpiu em madeira uma grande quantidade de imagens religiosas.
Na segunda metade do século XVIII, graças ao ouro, surgiram as ricas construções em pedra e alvenaria.
Foi nessa época, quando Minas Gerais liderava o movimento artístico da colônia, que Aleijadinho desenvolveu sua atividade de arquiteto e escultor.
Foi difícil obter o reconhecimento de seu talento, pois na época, não se perdoava a condição de mestiço. Muitos de seus trabalhos foram feitos para confrarias e irmandades de brancos.
Por conta de sua condição, não lhe foi permitido assinar nem sua obra nem os livros de registro de pagamentos.
Quando sua fama, apesar de tudo, chegou a outras cidades e sua obra se encontrava em pleno esplendor, a doença o atacou. Lepra ou sífilis, não se sabe ao certo, deformou seus pés e mãos.
Entretanto, mesmo doente, ele não abandonou sua arte. Assim, quando suas mãos se deformaram por completo, atou-as com uma correia de couro para segurar o cinzel, o martelo e a régua.
Aleijadinho faleceu no dia 18 de novembro de 1814 em sua cidade natal. Seu corpo foi sepultado na Matriz de Antônio Dias, junto ao altar da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte.
A maior parte das obras de Aleijadinho tem como tema central a religiosidade. As imagens sacras que produziu se caracterizam pela cores, leveza, simplicidade e dinamismo.
Grande parte de sua obra encontra-se nas cidades mineiras de Ouro Preto (antiga Vila Rica), Tiradentes, São João del Rei, Mariana, Sabará e Congonhas do Campo.
Algumas obras escultóricas que produziu estão no Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonha do Campo. A planta do local imita o santuário de Bom Jesus de Braga, em Portugal.
Nesse Santuário, merecem destaque as representações da "Via Sacra". As cenas da Paixão de Cristo são formadas por 66 figuras, todas de cedro, em tamanho natural. Podemos encontrar essas obras dispostas nas sete capelas da rampa do Santuário do Bom Jesus de Matosinhos:
O conjunto conhecido como os "doze profetas" foi produzido entre os anos de 1794 a 1804. Aleijadinho representou Amós, Abdias, Jonas, Baruque, Isaías, Daniel, Jeremias, Oseias, Ezequiel, Joel, Habacuque e Naum.
Assim, o adro do Santuário, em forma de terraço, é ornado por 12 estátuas dos profetas um pouco maiores que o tamanho natural. As formas imitam os trajes da época dos profetas, segundo as gravuras bíblicas.
As estátuas dos profetas foram feitas de pedra-sabão, abundante na região do ouro. Esse material foi largamente utilizado por Aleijadinho também em umbrais e medalhões de frontispícios.
A Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, é considerada uma obra prima do barroco brasileiro. Sua construção foi iniciada em 1776 e concluída em 1794. Além de elementos do barroco, é notória a influência do estilo rococó.
Aleijadinho traçou a planta, elaborou a talha e a escultura do frontispício. Fez dois púlpitos, nos quais esculpiu figuras de santos.
Produziu também a pia batismal, as imagens de três pessoas da Santíssima Trindade e os dois anjos que adornam o altar principal. A fachada é adornada por um medalhão onde se insere a imagem de São Francisco de Assis.
Chica da Silva
Chica da Silva (1732-1796) foi uma escrava brasileira alforriada que ficou famosa pelo poder que exerceu no arraial do Tijuco, hoje a cidade mineira de Diamantina. Manteve uma relação de concubinato com o contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira.
Francisca da Silva nasceu no Arraial do Tijuco, atual cidade de Diamantina, Minas Gerais, na época em que o Brasil tornou-se grande produtor de diamantes. Filha do português, capitão das ordenanças, Antônio Caetano de Sá e da africana Maria da Costa, foi escrava de um proprietário de lavras, o sargento-mor Manoel Pires Sardinha, com quem teve um filho chamado Simão Pires Sardinha, alforriado pelo pai, que o deixou bens em testamento.
Com 22 anos, Chica da Silva foi comprada pelo rico desembargador João Fernandes de Oliveira, contratador de diamantes, que chegou ao Arraial do Tijuco, em 1753. Depois de alforriada, passou a viver com o contratador, mesmo sem matrimônio oficial. Chica da Silva passou a ser chamada oficialmente Francisca da Silva de Oliveira. O casal teve 13 filhos e todos receberam o sobrenome do pai e boa educação.
Chica da Silva, mulata, frívola, prepotente, impôs-se de tal forma, que o rico português atendia a todos os seus caprichos. O maior deles, como não conhecia o mar, pediu ao marido para construir um açude, onde lançou um navio com velas, mastros, igual às grandes embarcações.
Chica da Silva vivia em uma magnífica casa, construída nas encostas da serra de São Francisco, onde promovia bailes e representações. Era dona de vários escravos que cuidavam das tarefas domésticas de sua casa. Só ia à Igreja ricamente vestida e coberta de joias, seguida por doze acompanhantes. Consta que muitas pessoas se curvavam à sua passagem e lhe beijavam as mãos.
João Fernandes de Oliveira foi acusado de contrabandear diamantes, chegou a ser preso e perdeu parte de seus bens. Mesmo assim, possuía uma das maiores fortunas do Império Português. A união do casal que durava 15 anos, foi interrompida em 1770, quando João Fernandes retornou a Portugal, depois da morte de seu pai a fim de resolver questões de herança familiar, levando com ele os quatro filhos que teve com Chica da Silva. Lá, adquiriram educação superior e alcançaram cargos importantes na administração do reino.
Chica da Silva ficou no Brasil com as filhas e a posse das propriedades do marido, o que lhe permitiu continuar vivendo no luxo. Suas filhas estudaram prendas domésticas e música. Mesmo sem viver com João Fernandes pelo resto de sua vida, Chica da Silva conseguiu distinção social e respeito na sociedade elitista de Minas Gerais, no século XVIII.
Chica da Silva convivia com a elite branca local. Em seu testamento, doou parte de seus bens às irmandades religiosas do Carmo e de São Francisco, que eram exclusivas de brancos, e às das Mercês, exclusivas dos mestiços e a do Rosário dos Pretos, que eram reservadas aos negros.
Chica da Silva faleceu em Serro Frio, Minas Gerais, no dia 15 de fevereiro de 1796. Foi sepultada na irmandade religiosa de São Francisco de Assis, exclusiva dos brancos.
Henrique Dias
Há pouca documentação sobre Henrique Dias, um dos heróis negros da luta contra os holandeses. As informações só começam a aparecer, em 1633, quando ele se apresentou ao general Matias de Albuquerque “para servir com alguns de sua cor em tudo o que lhe determinasse”, tornando-se o capitão do grupo e recebendo a patente de governador dos crioulos, negros e mulatos do Brasil.
Sabe-se que nasceu em Pernambuco, mas não se conhece a data do seu nascimento. Também não se sabe se nasceu escravo ou liberto, nem quem foi sua mulher. Não teve filhos homens, mas quatro filhas, duas das quais se chamavam Guiomar e Benta.
Não há um retrato seu autêntico, conhecido. Os que aparecem nos compêndios e até em livros eruditos são pura fantasia.
Sua primeira ação militar foi a defesa do Engenho São Sebastião, quando contou com a ajuda de vinte negros e de outros capitães, e onde recebeu o primeiro dos seus 24 ferimentos lutando contra os holandeses. Num desses ferimentos sua mão esquerda teve que ser amputada.
Travou combates com os holandeses em Pernambuco, Bahia, Alagoas e Rio Grande do Norte, não perdendo sequer uma batalha. Tomou parte, entre outras, nas batalhas das Tabocas, de Casa Forte, quando defendeu o engenho de Dona Anna Paes, de Cunhaú e dos Guararapes.
Henrique Dias estabeleceu-se numa estância no contorno do Recife e da cidade Maurícia (atual bairro de Santo Antônio) que, segundo os documentos, era a mais próxima dos inimigos. Ficava tão perto dos holandeses que, às vezes, o duelo não era com bala e sim com palavras de desafio e injúria. Da sua estância realizou várias investidas importantes contra os batavos. O local foi atacado diversas vezes pelos flamengos, porém eram sempre rechaçados.
Com a rendição do Recife, em 1654, Henrique Dias, ao contrário de outros militares que combateram os holandeses, não recebeu as recompensas que lhe eram devidas, tendo que viajar a Portugal, em março de 1956, para requerer a remuneração atrasada dos seus serviços.
Foi-lhe concedida por Dom João IV, a comenda dos Moinhos de Soure, da Ordem de Cristo, que estava vaga por morte de Antônio Felipe Camarão, que já a possuía desde 1641.
Passou seus últimos anos em Pernambuco, morrendo em extrema pobreza no dia 7 ou 8 de junho de 1662, no Recife, sendo enterrado por conta do Governo, no Convento de Santo Antônio, em local desconhecido.
Ruth de Souza
(texto de 2006)
Ruth Pinto de Souza nasce no Rio de Janeiro em 12 de maio de 1921. Até os 9 anos de idade vive com a família em uma fazenda em Porto do Marinho, pequena cidade do interior de Minas Gerais. Com a morte do pai, ela e a mãe voltam a morar no Rio de Janeiro, em uma vila de lavadeiras e jardineiras, no bairro de Copacabana. Interessa-se por teatro ainda menina, quando assiste a récitas no Municipal. Pela Revista Rio, toma conhecimento do grupo de atores liderados por Abdias do Nascimento, o Teatro Experimental do Negro. Une-se ao grupo e faz sua estreia em O imperador Jones, de Eugene O’Neill, em 8 de maio de 1945, no palco do Municipal.
Por indicação de Paschoal Carlos Magno, recebe bolsa de estudo da Fundação Rockefeller e passa um ano nos Estados Unidos: na Universidade Harvard, em Washington, e na Academia Nacional do Teatro Americano, em Nova York.
Em 1948, indicada pelo autor Jorge Amado, estreia no cinema em Terra violenta, adaptação do seu romance Terras do sem fim. Com direção do norte-americano Edmond Bernoudy, o filme tem ainda no elenco Anselmo Duarte, Maria Fernanda, Heloisa Helena e Ziembinski. A partir daí, sua carreira de atriz prossegue focada no cinema.
Participa de diversas produções das três empresas pioneiras: Atlântida, Maristela Filmes e Vera Cruz. Na Atlântida, roda Falta Alguém no Manicômio (1948) e Também Somos Irmãos (1959), ambos de José Carlos Burle, e A Sombra da Outra (1950), de Watson Macedo. Contratada para o elenco fixo da Vera Cruz, atua em Ângela (1951), Terra é Sempre Terra (1952) e Sinhá Moça(1953), todos dirigidos por Tom Payne, e Candinho(1954), de Abílio Pereira de Almeida, estrelado por Mazzaropi. Por seu desempenho em Sinhá Moça, torna-se a primeira atriz brasileira indicada para prêmio internacional: o Leão de Ouro, no Festival de Veneza de 1954, em que disputa com estrelas como Katherine Hepburn, Michele Morgan e Lili Palmer, para quem perde por dois pontos. Em 1958 filma Ravina, com Rubem Biáfora, um marco na cinematografia brasileira.
Em 1959 vive um momento especial no palco, quando protagoniza Oração para uma Negra, de William Faulkner, com Nydia Licia e Sérgio Cardoso, no Teatro Bela Vista, em São Paulo. Com Roberto Farias aparece em Assalto ao Trem Pagador, em 1962, ao lado de Eliézer Gomes, Luíza Maranhão e Reginaldo Farias.
Depois de atuar em radionovelas, trabalha nos teleteatros da Tupi e da Record. Em 1969 integra o elenco da TV Globo e nela se torna a primeira atriz negra a protagonizar uma novela: A Cabana do Pai Tomás, na qual divide o estrelato com Sérgio Cardoso. Há 30 anos participa intensamente da teledramaturgia da emissora.
Atravessando gerações, marca presença no cinema com cineastas mais jovens, como Walter Salles, em A Grande Arte (1991), Aluísio Abranches, em Um Copo de Cólera (1999), e Zito Araújo, em As Filhas do Vento (2004).
Grande Otelo
Quando o pai morreu esfaqueado e a mãe, uma cozinheira que trabalhava com o copo de cachaça ao lado do fogão, casou outra vez, ele aproveitou a visita de uma companhia de teatro mambembe a Uberlândia para escapulir. A diretora do grupo, Abigail Parecis, o adotou "de papel passado" e o levou para São Paulo;
- Em seu novo lar tinha a tarefa de levar a filha de dona Abigail às aulas de piano. Mas Otelo fugiu de novo e, após várias entradas e saídas do Juizado de Menores, foi adotado, mais uma vez, pela família de Antônio de Queiroz, político influente da época. Dona Eugênia, mulher de Queiroz, tinha ido ao Juizado atrás de uma garota que a ajudasse na cozinha. O administrador do albergue sugeriu que levasse o negrinho fujão que sabia declamar, dançar e fazer graça;
- Os Queiroz o colocaram no Colégio Sagrado Coração de Jesus, de padres salesianos, onde estudou até a terceira série ginasial;
- Nos anos 20 integrava a Companhia Negra de Revistas, cujo maestro era Pixinguinha;
- Em 1932 entrou para a Companhia Jardel Jércolis (pai do ator Jardel Filho e um dos pioneiros do teatro de revista), quando ganhou o apelido que o consagrou. Os amigos o chamavam Pequeno Otelo, por razões óbvias, mas ele preferiu o pseudônimo de The Great Othelo, em inglês mesmo, que já era moda na época. Depois traduziu para o português;
- Em "Fitzcarraldo" (1982), filmado na selva do Peru, quase enlouqueceu o ator Klaus Kinski, que tinha o ego do tamanho da Amazônia. Otelo precisava fazer uma cena em inglês mas resolveu falar em espanhol, idioma que Kinski desconhecia. Irado, Kinski retirou-se do set. Quando o filme estreou na Alemanha aquela foi a única cena aplaudida pelo público, contou depois o diretor Werner Herzog;
- Uma tragédia viria a abalar a vida de Otelo: sua mulher matou o filho do casal, de 6 anos de idade, e se suicidou. As filmagens de "Carnaval no Fogo" foi abalada. Otelo filmou a cena em que fazia o papel de Julieta e Oscarito o de Romeu, sem saber da nada. Abalado, afastou-se da fita e só assistiu a cena quase 30 anos depois;
- Em 1993 um ataque do coração fulminou o pequeno Grande Otelo, a caminho de Paris, para uma homenagem que receberia no Festival de Nantes.
Dandara
Descrita como uma heroína, Dandara dominava técnicas da capoeira e lutou ao lado de homens e mulheres nas muitas batalhas consequentes a ataques a Palmares, estabelecido no século XVII na Serra da Barriga, situada na então Capitania de Pernambucoem região do atual estado de Alagoas, cujo acesso era dificultado pela geografia e também pela vegetação densa.
Não se sabe se Dandara nasceu no Brasil ou no continente africano, mas teria se juntado ainda menina ao grupo de negros que desafiaram o sistema colonial escravista por quase um século. Ela participava também da elaboração das estratégias de resistência do quilombo.
Além de lutar, participava de atividades cotidianas em Palmares, como a caça e a agricultura. No quilombo era praticada a policultura de alimentos como milho, mandioca, feijão, batata-doce, cana-de-açúcar e banana.
Os ataques ao Palmares teriam se tornado frequentes a partir de 1630, com a invasão holandesa. Segundo a narrativa em torno de Dandara, ela teria tido importante papel no rompimento do marido com seu antecessor, Ganga-Zumba, primeiro grande chefe do Quilombo de Palmares e tio de Zumbi. Em 1678, Ganga-Zumba assinou um tratado de paz com o governo de Pernambuco. O documento previa que as autoridades libertassem palmarinos que haviam sido feitos prisioneiros em um dos confrontos. E também a liberdade dos nascidos em Palmares, além de permissão para realizar comércio. Em troca, a partir dali, os habitantes do quilombo deveriam entregar escravos fugitivos que ali buscassem abrigo. Dandara, ao lado de Zumbi, teria sido contrária ao pacto por entender que se tratava de um acordo que não previa o fim da escravidão. Ganga-Zumba acabou sendo morto por um dos palmarinos contrários à sua proposta.
Dandara ( — Capitania de Pernambuco, 6 de fevereiro de 1694) foi uma guerreira negra do período colonial do Brasil. Após ser presa, suicidou-se se jogando de uma pedreira ao abismo para não retornar à condição de escrava. Foi esposa de Zumbi dos Palmares e com ele teve três filhos. Sua figura é envolta em grande mistério, pois quase não existem dados sobre sua vida e/ou atos.
Cândido Fonseca Galvão
Cândido da Fonseca Galvão, mais conhecido por Obá II D’África e Dom Obá. Nasceu, possivelmente em 1845 em Lençóis, na Bahia. Filho de Benvindo da Fonseca Galvão, africano forro da nação iorubá. Foi um militar brasileiro, possuía a patente de alferes.
No Império, assim como na Colônia, o serviço militar não era obrigatório. Porém com a emergência da Guerra do Paraguai, o Brasil Império, a partir de 1865 cria um sistema de recrutamento e alistamento para guerra. Dias antes da assinatura do decreto que criaria o voluntário da pátria, em 02 de janeiro de 1865; Cândido da Fonseca Galvão, jovem negro de família abastada, provavelmente adquirida nas lavras dos diamantes; movido por sentimento nacionalista, alistou-se voluntariamente no exército, para lutar na guerra do Paraguai. Neste período, havia na prática, um recrutamento forçado das camadas mais humildes, mormente negros, índios e mestiços.
Neste contexto, Galvão se distingue. A Guerra do Paraguai constituiu-se em oportunidade para o jovem negro exercitar suas qualidades de liderança. E neste cenário, devido a sua grande bravura, foi condecorado como oficial honorário do Exército brasileiro.
O Rio de Janeiro com o prestígio político da Corte, e com a prosperidade adquirida com a lavoura cafeeira, configurava-se como região de melhores condições de trabalho e de vida. Estes atrativos fizeram com que Galvão, em meados de 1870, deixasse Salvador e se fixasse na capital do Império.
É no Rio de Janeiro que Galvão, o Dom Obá, torna-se uma figura folclórica, e para alguns, um tanto quanto caricata da sociedade carioca. Porém, independente das contradições em relação a este personagem, efetivamente era reverenciado como um príncipe real por vários afro-brasileiros, escravizados ou livres que viviam nos subúrbios da capital do Império. É também neste cenário, em fins do século XIX, que Dom Obá transforma-se em um dos pioneiros na luta pela igualdade racial no Brasil. Passa a escrever artigos nos jornais da corte, onde defendia a monarquia brasileira, o combate ao trabalho escravo, dentre outros assuntos relevantes para época. Participava fervorosamente dos debates intelectuais do período. Tinha admiração por D. Pedro II. Era um dos primeiros a chegar às suas audiências públicas. Falava diretamente com o imperador sobre suas inquietações, sonhos e perspectivas. Nestas oportunidades, procurava o apoio de D. Pedro II para seus projetos. Dom Obá atuou na campanha abolicionista e andava com farda de gala, cartola elegante, luvas brancas e chapéu de alferes, em um período em que poucos negros andavam calçados. E neste contexto, era considerado referência para os escravizados que buscavam liberdade ao mesmo tempo em que para outros, que consideravam seus hábitos extravagantes, por estes era considerado meio “amalucado”.
Tendo em vista sua admiração pelo imperador, com a queda do Império em 1889, os republicanos cassaram seu posto de alferes. Meses depois morreu, em julho de 1890.
Esperança Garcia
Escravizada que, no final do século XVIII, escreveu uma petição destinada ao governador do Piauí.
Esperança Garcia era escravizada confiscada aos padres jesuítas, que, com a expulsão destes pelo Marquês de Pombal, passaram-na à administração do governo do Piauí. Esperança Garcia foi levada à força da Fazenda Algodões, perto de Floriano, para uma fazenda em Nazaré do Piauí. Em 6 de setembro de 1770, a escravizada dirigiu uma petição ao Presidente da Província de São José do Piauí, Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, denunciando os maus-tratos físicos de que era vítima, ela e seu filho, por parte do feitor da Fazenda Algodões.
Dentre as diversas leituras concebíveis da referida petição, é possível constatar, em fins do século XVIII, a existência de mulher negra escravizada alfabetizada e ciente de sua possibilidade de reivindicar o direito a um tratamento mais humanizado. Cabe salientar, nesse período, que quem fosse flagrado ensinando escravizado a ler era preso e/ou processado.
A atitude de Esperança Garcia não era uma prática. A habilidade dela em perceber a viabilidade de conciliar seu letramento com recurso de reivindicação evidencia sua capacidade de análise de conjuntura e habilidade política ao expor, na petição, a necessidade de realizar alguns sacramentos relacionados à religião católica – hegemônica naquele momento histórico –, assim como a crença na possibilidade de ver sua solicitação considerada pelas autoridades.
Para além de elementos diretamente relacionados à vida de Esperança Garcia, a petição permite a possibilidade de algumas leituras sobre o contexto histórico, cultural e social de São José do Piauí, tais como algumas práticas diretamente relacionas aos escravizados, como a revelação dos sofrimentos a que estes estavam sujeitos e a separação de entes familiares quando da venda destes.
É importante lembrar que, tendo em vista a importância dada à petição de Esperança Garcia, por força da Lei nº 5.046, de 7 de janeiro de 1999, ficou instituído o dia 6 de setembro, data da petição, como sendo o “Dia Estadual da Consciência Negra” no Piauí.
CARTA:
“Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Capam. lá foi adeministrar, q. me tirou da fazenda dos algodois, aonde vevia com meu marido, para ser cozinheira de sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. ha grandes trovoadas de pancadas em hum filho nem sendo uhã criança q. lhe fez estrair sangue pella boca, em mim não poço esplicar q. sou hu colcham de pancadas, tanto q. cahy huã vez do sobrado abaccho peiada, por mezericordia de Ds. esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por batizar. Pello q. Peço a V.Sª. pello amor de Ds. e do seu Valimto. ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Procurador que mande p. a fazda. aonde elle me tirou pa eu viver com meu marido e batizar minha filha q.
De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia”
Carta Versão léxico atualizado:
“Eu sou uma escrava de V.Sª. administração de Capitão Antonio Vieira de Couto, casada. Desde que o Capitão lá foi administrar, que me tirou da Fazenda dos Algodões , onde vivia com meu marido, para ser cozinheira de sua casa, onde nela passo tão mal. A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho nem, sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca; em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo, peada, por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar a três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Pelo que peço a V.Sª. pelo amor de Deus e do seu valimento, ponha aos olhos em mim, ordenando ao Procurador que mande para a fazenda onde ele me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.Sª. sua escrava, Esperança Garcia”
Mercedes Batista
Mercedes Ignácia da Silva Krieger (Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, 1921 – Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014)1. Coreógrafa, bailarina, divulgadora da dança afro-brasileira e carnavalesca. Jovem, muda-se para a capital carioca. Em 1944, frequenta o Curso de Danças oferecido pelo Serviço Nacional de Teatro do Rio de Janeiro e ministrado por Eros Volúsia (1914-2004), de quem recebe as primeiras lições de balé clássico e dança folclórica. Nos anos 1940, ingressa na Escola de Balé do Theatro Municipal do Rio de Janeiro e estuda com o estoniano Yuco Lindberg (1908-1948) e o tcheco Vaslav Veltchek (1897-1968). Em 1948, é admitida como bailarina profissional no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em fins da década de 1940, é selecionada pela coreógrafa e antropóloga estadunidense Katherine Dunham (1909-2006) para estudar na Dunham School of Dance, em Nova York. Em 1953, no Brasil, funda o Ballet Folclórico Mercedes Baptista.
Em 1955, o grupo é convidado pelo coreógrafo russo Léonide Massine (1896-1979) para participar de Hino à Beleza, peça elaborada para o Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. A companhia também atua no teatro de revista com Agora a Coisa Vai (1956), Rumo a Brasília (1957) e Juju-Fru-Fru (1958), realizadas pela Companhia Silva Filho no Teatro João Caetano, com repercussão na época.
O primeiro espetáculo exclusivo do grupo no Brasil é África, no Teatro de Arena da Guanabara, em 1962. A companhia faz turnês na Argentina (1955, 1958 e 1962) e no Uruguai (1955 e 1962). Em 1965, participa do Festival de Arte Folclórica na França e sai em turnê por seis meses, apresentando-se em 150 cidades europeias. Em 1966, a companhia faz turnê pelo Chile e, em 1969, segue para Portugal.
Em 1960, Mercedes Baptista atua como carnavalesca na Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, com tema sobre Quilombo dos Palmares. Em 2008, recebe homenagem da Escola de Samba Cubango (grupo de acesso). Ministra cursos fora do Brasil e introduz a disciplina dança afro-brasileira na Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Em 2005, recebe homenagem com a exposição Mercedes Baptista – A Criação da Identidade Negra na Dança. Em 2007, como desdobramento da mostra, Paulo Melgaço da Silva Júnior lança a biografia da dançarina.
Mercedes Baptista é figura-chave no âmbito da dança, ao fomentar o processo de inserção étnica e cultural em curso no Brasil. Sua trajetória é realizada apesar dos poucos recursos e do tratamento diferenciado que é lhe dado no início da carreira. Nasce em uma família que vive do trabalho da mãe, a costureira Maria Ignácia da Silva, e exerce diversas atividades profissionais antes de se firmar na dança. No Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é escalada poucas vezes para atuar nas apresentações.
Seu trabalho é construído com base em experiências vividas durante sua formação: as aulas com a coreógrafa Eros Volúsia; a atuação no Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado pelo político e ativista social Abdias do Nascimento (1914-2011), a participação no Conselho de Mulheres Negras e os estudos na Dunham School of Dance, em Nova York. Reunindo essas influências, Mercedes Baptista funda um grupo de dança dedicado à cultura afro-brasileira e transforma-se em ícone da reafirmação do artista negro da dança no Brasil.
Este status é conquistado, inicialmente, por ser a primeira bailarina negra a atuar profissionalmente no Corpo de Baile do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Também contribuem para sua representatividade a criação de um grupo de dança formado exclusivamente por bailarinos negros e o desenvolvimento de um trabalho de pesquisa com as matizes da dança afro-brasileira, inserindo a presença do artista negro no teatro, no cinema e na televisão. Além disso, a coreógrafa introduz a disciplina dança afro-brasileira na Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Com isso, cria uma imagem da cultura negra brasileira dentro e fora do país e torna-se referência no assunto. Ela também inova os desfiles de escolas de samba do Rio de Janeiro, inserindo, em seu conjunto, alas coreografadas.
No cenário desigual e desfavorável para os negros no Brasil, Mercedes Baptista dribla as dificuldades e constrói uma história que deixa seu nome marcado com destaque na história da dança no país, assim como outros negros o fazem em diferentes campos de atuação social. Em 1963, ela quebra tabus quando realiza um espetáculo com seu grupo de bailarinos negros no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o templo sagrado da cena artística de seu tempo.